"É um bocado aborrecente"

"É um bocado aborrecente"

por Miguel Costa -
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Há pessoas a quem falta a quarta classe para acabarem o curso e há por aí uma universidade privada que compreendeu isto na perfeição.
Saber mudar o pneu de um automóvel é o bastante para ser engenheiro mecânico.
Lembro-me de um primo meu, pequeno, dizer:
- Se a mãe sesse o pai puzia gravata.
Lembro-me da Isabel, quando
a levei a uma exposição de pintura e lhe perguntei o
que achava,
me responder:
- É um bocado aborrecente.
Lembro-me do Pedro, zangado com o João, bater à porta
do quarto do banho a fazer queixa, do pai
a exclamar:
- Ah!!!
E do Pedro para o João, vingado:
- Estás a ver, o pai disse "Ah!"
E acho que se fôssemos mais assim a nossa vida melhorava.
Muito mais
do que escutar um ministro referir-se às "ciclópicas tarefas que nos pendem sobre os ombros"
e eu a ver as ciclópicas tarefas a escorregarem pelas mangas abaixo ou do professor de obstetrícia que declarava:
- O que caracteriza esta doença é ser caracterizada pelas seguintes características
Se dependesse de mim
puzia o meu primo a dar aulas, arranjava um ministro menos aborrecente e escolhia um professor de obstetrícia capaz de resumir a lição num:
- Ah!!! eloquente.
Lembro-me de um cabo, em Angola, que respondeu:
-Básicoprati-
camente
quando lhe perguntei se ele achava que tinha razão e espanta-me
que os políticos não respondam isso ao interrogarem-nos se pensam que as suas opções são correctas e as eleições não sejam marcadas para o dia trinta e dois que era a data em que um sipaio queria casar-se.
Básicopraticamente tinha razão: que dia existe melhor que o trinta e dois para uma cerimónia dessas?
O que não se pouparia no médico se tomassem todas as manhãs uma aspirina, como
o meu amigo senhor Vicente que, ao interessar-me pelas vantagens de tanta pastilha, me esclareceu, firme:
- Pelo sim pelo não, o mesmo que me apareceu com uma coceira qualquer e que, ao comentar-lhe que devia ser chato estar sempre a torturar a pele com as unhas me informou:
- É chato na medida em que se torna aborrecido.
Coisa em que francamente nunca tinha pensado.
É que, de facto, as situações chatas são-no, na medida, em que se tornam aborrecidas e
a profundidade desta frase não me abandonou mais.
Tanta agudeza expressa de um modo aparentemente tão simples basta para elevar um homem às alturas do génio.
Ainda por cima pode virar-se a coisa ao contrário e afirmar que o aborrecido é aborrecido na medida em que se torna chato, o que nos faz voltar à crítica de pintura da Isabel.
Mais cedo ou mais tarde os grandes espíritos acabam por encontrar-se
na opinião de uma criança de cinco anos.
E aborrecente possui uma perfeição semântica que deixa o aborrecido a léguas.
É este pequeno toque de génio que faltou ao senhor Vicente para se tornar um Kant.
António Lobo Antunes, 2015